O duplo

x. 

Nasci num 22

E num 22, na vigésima segunda copa do mundo, me encontro (ou será que me encontrei?).

É interessante pensar em quanto Doutor Estranho há num mundo de tanta Feiticeira Escarlate. Todos duplos num multiverso. 

Só o que resta é amar. 

A si mesmo, com alguma sorte, com esperança de que o inverso, aquele que não sou eu, (ou que talvez seja ela), também se ame a si, e encontre a felicidade terna.


A lenda



                                                                                                  “A lenda geralmente é criada pela maioria do povo da aldeia, gente equilibrada.
                                                                                               O livro geralmente é escrito pelo único homem da aldeia que é louco.” 
Ariadne

Indubitavelmente, foi lá em Mont Blan'c, ou em Aparecida. Apesar disso, confesso, sinto em meu coração que uma parte do todo não veio, tão somente, em absoluto, da parte dela, senão também, daquele que veio de Tiradentes e depois foi para o Espírito Santo; ou Goiás, não tenho certeza, infelizmente.

                                                                    “Quando acordei hoje de manhã, eu sabia quem eu era, mas acho que já mudei muitas vezes desde então.”
Heráclitão

Com uma precisão bastante rasurada, como no mundo dos espelhos e das Maravilhas, é que se pôde vir a afirmar que os caminhos para a chegada dessa ideia vieram no fim, só no fim, depois de tudo. Talvez oriundos de alguma história, fábula, conto ou livro; disso eu sei, felizmente.

"...quando eu me aceito como eu sou, então eu mudo."
Demócrites

Mas é genuíno se deixar enganar de que a premissa toda veio de mim mesmo. Ou que fora, todavia, num sonho impecavelmente verdadeiro que emergiu e que posso afirmar, categoricamente, que não sei de onde surgiu esse pensamento.

                                                                                  “Não é que eu goste de complicar as coisas, elas é que gostam de ser complicadas comigo.”
Borges.

Rumores de que havia um homem na estrada que se chamava Raimundo. Ávido, rumava por aí, de lado a lado, rangendo os dentes, o seu cavalo. Desprovido de tantas coisas, como raiva ou questionamento, promovia, em trote despreocupado, o pó que impregnava todo o seu cavaleiro. Quando o bigodudo moço, num estalo, se põe a pensar no que era e do que era feito o destino. Mas, desde já, não era mais ele.

Antes de conhecer qualquer coisa, parte-se da certeza de que não se sabe se existe um destino. Esse ponto é problemático. De muitas abordagens que se pode aceitar, há algumas que causam intriga. Porque essa ideia do lugar destinado a um fim específico não tem parâmetros. Vão dizer que o destino é um só. Mas é fulcral a questão: É um caminho só ou permite variações?


Assumimos que o desígnio seja a chegada ao ponto B saindo do ponto A. Mas o que acontece com todo o resto? É sempre do ponto A ao ponto B? Um só? Sem variação? Assumindo também que seja um problema adquirir a ideia que se universaliza nesse ponto, se faz necessário que se coloque em jogo o caso particular. 

Assumimos a regra de se chegar a um lugar pré-determinado, havendo um ponto de partida, tomando-a como imutável. Assim, pelo costume, chamamos isso de “Destino”. Entretanto, o estranhamento acontece quando suspeitamos da indeterminação do lugar de chegada se for considerada a possibilidade de particularização dessa mesma regra, cuja qual, afirmamos anteriormente, é uma só. 

Com efeito, posso sair do ponto V e chegar ao ponto L. Antes que a mente dê nó, explica-se, que o abecedário deu a volta. A regra permanece a mesma, entretanto, essa foi uma particularização (quando não, uma variável), da regra que não mudou. (Aqui, o navio de Teseu está sozinho na floresta, e não há ninguém lá). Mas que droga! E todo resto?


É Destino o percorrer das outras letras também?

E se, para chegar ao ponto A, saindo do ponto H eu precise percorrer também a letra O? Mas, e se o descaminho do caminho me forçasse a ir ao encontro da letra R, para que então eu possa ter cumprido meu Destino de chegar na letra A? E só depois, no fim, depois de tudo, eu tenha percebido que minha trilha me levou ao caminho da H.O.R.A? Se tivesse parado em outros pontos, teria eu cumprido essa façanha? Teria, ainda assim, sido um destino; o meu destino? Teria, no fim, cumprido a H.O.R.A? Ou teria feito algo incompreensível como H.O.R.T.A? Seria o Destino um papel, único, puro, santo e quase virginal, no qual se talha uma única vez? Ou, não, seria antes, o escárnio de um palimpsesto?


Chegamos aqui a uma descoberta sobre essa caminhada, portanto: Não sabemos se o destino é um só caminho ou ele é variável. Se ele é um só, como se escrevesse em cima de uma fôrma, já moldada pelas forças invisíveis do destino, ou se ele é um papel fácilmente rasurável que, sagazmente, se reescreve para sempre fazer caber a sua história nas bordas limítrofes da folha, para se afirmar que nada há fora da história. De um modo que se não há relato, não há história, e sem história não há destino; mas só há a história e só há o destino quando ele cabe no rasurável papel da folha que define a existência de todas as coisas: desde a história até as letras e o destino.

Tão pouco sabemos, também, se ele tem uma única direção, sem permitir escolhas. Ou as escolhas moldam o destino enquanto se caminha “recalculando a rota”. No fim de todas as respostas, só temos perguntas. 

Outra delas é a seguinte: O Destino é rastreável? Se há rastros de destinos, eles são rastros destinados a serem  rastreáveis, ou não, antes do destino deixar a deriva seus rastros para serem apreciados, eles são escondidos? E, se são escondidos, é possível conhecê-los? Ou o pior: porque não o seriam?

E se não existisse destino? E se existisse tão somente interpretações dos rastros de desígnios que não estão escondidos e nem tem propósito destinado à eles? Podemos conhecê-los? E se há interpretações, há também interpretadores? Mas e se não haver destino nem interpretações e apenas vontades? Chegamos aqui a uma descoberta sobre essa caminhada, portanto: no fim de todas as respostas, só temos perguntas. 


O pó, impregnado no bigode, também não responde. Menos, o equino. E já não se pode projetar esperanças no Raimundo, uma vez que já não o é mais. Quando Raimundo encontrou a sorte e a sorte encontrou Raimundo, nos foi dito, que não era o destino deles se encontrarem. Mas eles o fizeram. Talvez por teimosia, talvez por acaso, talvez até por outros motivos, mas assim o fizeram e construíram a sua história. Ela navegou nas possibilidades do Destino e se fez presente marcando uma trajetória. E dela foram retiradas muitas pegadas que ainda viriam a ser fragmentos históricos que seriam apenas os rastros de um destino. 

Nos foi contado também, que não era o destino da sorte encontrar Raimundo e vice e versa. O que sabemos foi que ambos se tornaram parte da história um do outro, com ou sem sorte. Eles andaram juntos e deixaram suas marcas. Haviam não apenas pegadas na areia, como também, marcas históricas que se tornaram, anos mais tarde, em rastros de destino. Seus rastros eram rastreáveis e por isso, de algum modo, alguém pôde juntar esses pedaços rasurados nas folhas de uma carta (de um conto, de um livro, de uma nota, de um bilhete ou de uma fábula), e com perplexidade foi revelada a história do bigode e da bonança. Já era o fim desde o princípio. Mas esta foi apenas a interpretação do intérprete do destino.

Acompanhamos, juntos, a sorte e o Raimundo. Todos, com dificuldades interpretativas, não poderíamos ler nas cartas tais rastros que o Destino têm. Não sabíamos e nem poderíamos saber o que nos desígnios se escondia. Não sabíamos e nem poderíamos saber deles pois não nos ensinaram a ler o acaso. Éramos apenas uma canção para embalar marujos. Não sabíamos, eu sei, que o Tempo é ainda pior.


Raimundo

 Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh...


Raimundo...



Se eu fosse mais mundo,

seria justo

odiar o Amor

mais profundo? 


Por mais que fosse profano,

era, ainda, humano.

E, se fosse ainda mais insano,

me diga, Raimundo:

O que faria eu, nauseabundo,

Com todo o místico engano?


E aí,

Bigodudo?

O que eu faço com esses olhos 

que não perguntam nada?

Faço, ainda, uma rima? 

Procuro, ainda, alguma solução?


 Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh...

Raimundo...

O que se esconde nas tuas preces?

Onde foram parar as tuas rimas?

As tuas oito faces, 

e as tuas pernas?


Esqueci o fio da meada.

Onde é que ela estava? 

Previu?

aquele gosto precoce,

um óbice,

da razão mais vil?

Deve ter voltado, 

espero,

À puta que lhe pariu.


 Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh...

Raimundo...

Se eu fosse mais mundo,

seria justo

odiar o Amor

de modo mais profundo?

Foda-se,

ou,

que o valha...


Naquele fio de navalha, 

cega, 

que não acutila nada,

chora, justificando,

cortando o gerúndio

do teu pulmão,

tosquiando, 

a bosta

do meu coração.


Eu não devia te dizer...

Mas esse beck...


E, esse conhaque,

botam mais desejo

bem no fundo do rabo.


E, virado pra Lua, o gracejo.

E, esse maldito Diabo,

no comovido toque,

Não quer rima,

ou beijo.


E o que resta

é só,

além de lágrima,

sem festa, 

o muleque:

Aquele furor ilusório,

fulgurante, 

do

pechisbeque.


 Ahhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhh...

Raimundo...

Me salva....


Me salva, Raimundo,

Me salva.



Desejo

Que o grandioso [que se foda] seja o guia




E que se foda-se


Porra


E que se foda



Porra

Ávida

 N'algum lugar do tempo algum anjo profetizava: Cuida! Cuida que a vida é ávida pelo retorno da própria vida na mesma vida em que tu vives. 

Fora essa uma época em que aprendia a ler e falar, mas não ouvir. 

Essa insanidade me perseguiu nos dias vindouros. Andava na rua e conheci alguém que bebia até gasolina, como eu. Tinha vômito na roupa, lágrimas nos olhos, lembranças solitárias, experiência sobre a vida, as coisas em geral e de coração vazio. Tinha vontade própria, conseguia andar por si, possuía a si e era ávida por viver. Não aceitava o lugar que a vida havia lhe imposto. Queria viver, queria amor, queria tanto.... O acolhimento oferecido fora incondicional até ficar de pé.

Mas a vida lhe tornou mais forte depois que partiu. Depois de adquirir tanto, mais do que imaginava.

Hoje, me encontro no fio da calçada comigo mesmo, sem esperança. Com o tempo, depois de aprender a ver, depois de aprender a ler, depois de aprender a falar, depois de tudo, ouvi. Mas só no fim, depois de tudo.

Hoje, e só hoje, percebi. A vida, na qual tentei ter paciência e ter controle sobre o que sentia, se fez implacável e retornou. Mas seu regresso se fez ao inverso. Colocou aquele que estava caído em pé e aquele que era a pé, no chão... Conversando com os ratos, comendo as migalhas dos pombos, refém do retorno, golfado por aquela mesma vida, ávida por regresso, no lugar do outro.

Assumi seu lugar e vi a vida se repetir.

Hoje, e só hoje, sôfrego e derrubado, sem admissão de rastejo,  gatinho naquela mesma calçada, arredio, como todos que estão no mesmo lugar, em lamento. Agora percebo, sempre tem alguém lá. Se a vida derruba quem fica em pé, ela também levanta quem anda de quatro. Se existe esperança? impossível determinar.

À vida, ao lamento, às inebriantes sensações, à experiência, ao amor, ao vento e ao vinho: Um estilhaçado corpo humano ora, por hora, pela alienação fiduciária do bem querer.

O homem na estrada

O homem na estrada não vê a si mesmo. Vê seu cavalo, vê seu caminho e não vê mais nada.

O homem em seu cavalo direciona seu olhar para a estrada e a estrada direciona seu caminho.

O homem na estrada vê a estrada, mas não vê o seu caminho.

Ele aprende a olhar a estrada e vê do que ela é feita. Vê no oceano amarelo partículas ínfimas que seu cavalo atropela. O homem na estrada não aprende que seu caminhar suja a si mesmo. Na estrada se pergunta como aquele pó tornou-se tão duro e como aquela dureza faz seu caminho. Mas não entende, ainda, porque o pó é leve, se a estrada é dura.

O homem segue, montado em seu cavalo, na estrada. Ele vê a estrada e não vê mais nada, nem mesmo seu caminho. O homem anda certo de sua ida sem nunca questionar sua volta. O homem na estrada, que não vê a si mesmo, pensa em como é reta aquela estrada sem saber onde vai acabar. Montado em seu cavalo já não vê só reta. Vê também a forma de seu cavalo que segue certo, na dureza da estrada, indo reto, onde quer que vá. O homem na estrada, montado em seu cavalo, ignorante, só vê a reta estrada sem nunca ver seu horizonte. O homem na estrada já sente não ter culpa sobre seu olhar.

O seu olhar é reto como a estrada e a estrada em linha reta, lhe dá mais retas para olhar. Nem cavalo nem homem tem mais disposição em enxergar. As linhas retas já são a sua estrada. O homem se mantém em seu olhar e em sua direção. O seu cavalo continua na estrada, ignorante de algum horizonte, e segue troteando o pó.

A estrada fez o homem dormir em seu cavalo que seguia na estrada. Quando acorda já não sabe mais o que é sonho ou realidade. Sonhara com uma estrada ignorante de si mesma e um cavalo solitário lhe atravessava. Já cansado de sua inexistência, empenha-se em ouvir a estrada. Mas já não há mais sons para ouvir. 

A estrada sedou a estrada, sedou o som da estrada e sedou o pó na estrada. Mas o homem em seu cavalo permanece na estrada sem ver seu caminhar. O pó, a estrada, o homem em seu cavalo e o horizonte vivem na mesma hora, porém, sem nunca se encontrar. Não há busca na estrada, tão pouco resposta. A estrada tem apenas linhas retas e desconhecimento. E o homem segue em frente, porque outro lado não há. Seu olhar e seu cavalo nunca saberão se já não houveram outros lados. Menos ainda, se a sua própria estrada já não é o próprio lado.



(10/2017)

Tem

 ... golfinhos no espaço :/